quarta-feira, 12 de maio de 2010

Sobre a Cavalgada do Mar

Houve recentemente um debate envolvendo a tradição gaúcha da Cavalgada do Mar e os maus tratos aos cavalos, quando defensores dos direitos dos animais manifestaram-se contra esta prática.
Não se pretende aqui fazer uma analise filosófica ou moral da questão, mas refletir sobre o que motivou tais manifestos contra a cavalgada. E é este o fato que é preciso observar: há uma rejeição a maus tratos aos animais. Se observarmos vários outros episódios envolvendo animais vamos perceber uma mudança: nossa sociedade não aceita mais maus tratos de animais.
Há 20 anos cavalos eram maltratados, exauridos rotineiramente, apesar de a legislação proibir maus tratos já desde 1934. Da mesma forma outros animais têm sido historicamente maltratados sem que se atente à legislação que cada vez mais especifica maus tratos e “dá providências” no caso de crueldade para com os animais. (Em especial a Lei de Crimes Ambientais de 1998 e a própria Constituição de 1988). É importante observar que neste caso a legislação não é respeitada, pois nossa cultura permite o uso (e abuso) de animais pela espécie humana. À medida que mudamos nossa visão a respeito vemos o reflexo no sistema jurídico. À medida que rejeitamos os maus tratos mudamos a legislação e sua aplicação.
Todos sabemos de cães e gatos abandonados ou severamente feridos a despeito da legislação proibir a crueldade com animais desde 1934. Também faz parte do nosso cotidiano cenas de cavalos feridos, cansados, famélicos e até mortos à exaustão a despeito da legislação. Mas a própria legislação e sistema judiciário são fruto da cultura e o século XXI está conhecendo a cultura que substituirá esta que cavalga cavalos à exaustão em nome da tradição.
Esta cultura que vemos nascer é a que se reúne em praça pública para pedir justiça e o fim dos maus tratos de animais.(Como aconteceu contra a Cavalgada do Mar e outras manifestações que têm ocorrido no Brasil e em outros locais cada vez mais freqüentes). Esta cultura que já existe e que mostra sua força é a que se mobiliza para impedir o uso de fogos de artifício para garantir a vida e o sossego de uma família de corujas no ano novo. É também esta cultura que se articula e se mobiliza para que animais não sejam mais parte do espetáculo nos circos.
Quem diria que um dia seria proibido cortar o rabo dos cães pelo apelo “estético” (tradição?)? Também é histórico o julgamento de jovens que mataram uma cadela de forma cruel, mesmo que para os defensores de animais o julgamento não tenha tido o resultado desejado. Quem pensaria há 20 anos que um dia alguém seria condenado por maltratar animais ?
Muitos cães foram maltratados de forma semelhante, mas o sistema judiciário não tinha ainda assimilado culturalmente os próprios termos da lei que proíbe maus tratos de animais (Há décadas, é preciso repetir). Mas à medida que a sociedade se transforma se modifica também a forma de encarar e cumprir a lei. É preciso lembrar que a lei é feita por homens e já desde Durkheim se sabe que a lei segue uma demanda cultural ou social e não o contrário.
Se hoje conseguimos enxergar o crime de maus tratos a animais assim arbitrado desde 1934 é porque nosso olhar mudou. Se formos mais longe e seguirmos observando vamos ver que estas mudanças aparecem em outras áreas. Hoje há um número cada vez mais crescente de vegetarianos por questões éticas, de pessoas que se recusam a contribuir com a exploração animal; empresas de cosméticos criam produtos com matéria prima livre de crueldade animal, ou seja, sem testes em animais, e mesmo sem matéria prima de origem animal e há mesmo aquelas que já trazem estes dados nas embalagens; ativistas boicotam empresas que patrocinam a crueldade com animais e algumas empresas começam a atender a demanda deste “mercado”. Isto mostra o poder e capital simbólico que estes ativistas começam a ter e que se confronta com a demanda de grupos que querem conservar os hábitos naturalizados que permitem a exploração animal e mesmo a crueldade ainda invisível para muitos.
Estamos diante de uma importante mudança cultural e estamos rejeitando a violência para com os animais. Esta mudança atinge a alimentação, a educação, a economia e mesmo hábitos que muitos pensariam estarem resguardados pela “tradição”.
A idéia da tradição por si só não sustenta a força desta mudança cultural. Os tradicionalistas precisam é refletir sobre isto, de que há uma mudança em curso e que ela se opõe a cavalgadas e a cavalos mal tratados (ou simplesmente à exploração animal). A mudança que está em curso irá libertar os animais da exploração humana e mesmo que os cavaleiros fossem muito hábeis, mesmo que o sol não estivesse tão quente haveria quem protestasse contra a cavalgada e haverá quem proteste cada vez mais contra este tipo de comportamento que acarreta sofrimento em animais e mesmo a exploração “indolor”.
É importante que todos que de alguma forma desenvolvem atividades, lucrativas ou não, que dependem direta ou indiretamente da exploração animal apercebam-se deste fato e ajam na mesma direção desta mudança evitando desgastes ou prejuízos. Usando as mesmas palavras do jornalista Marcio Bueno quando nos fala que a rejeição aos maus tratos de animais segue a galope, eu diria que a mudança segue a galope, cada vez mais célere e indomável como queriam os defensores dos direitos dos animais. A mudança já está em curso e não poderá ser freada ou domada como têm sido os animais, pois cada vez mais pessoas, ativistas ou não, têm se oposto à crueldade e mesmo à exploração de animais.
Eliane Carmanim Lima,
Porto Alegre, março de 2010.
Isto foi escrito em março depois da Cavalgada do Mar deste ano que levou vários cavalos a morte levando muitas pessoas, ativistas pelos direitos dos animais e outros , a protestarem. Nesta cavalgada vários animais padeceram e morreram o que levou várias pessoas a se manifestarem e muitas pessoas se pronunciaram contra a Cavalgada. O episódio culminou com uma manifestação na frente da Assembléia Legislativa com a presença em peso da mídia.
http://www.anda.jor.br/?p=49671
Psicóloga com especialização em Projetos Sociais e Culturais e mestrado em Sociologia pela UFRGS na área da Sociologia da Violência e Criminalidade. Professora universitária do curso de psicologia do SETREM. Desde 2006 vem desenvolvendo uma pesquisa sobre o vegetarianismo e para tal criou o Cadastro-Veg, o cadastro de vegetarianos.Eliane Camanim Lima